sexta-feira, abril 27, 2007

notas de viagem

Abri os olhos e eles não demoraram muito para se esbarrar na sua vaca branca que marca 11 horas da manhã. Ela, sem muito esforço, disse que era hora de levantar. Mas somente o diabo sabe o quanto eu já me acostumei em ouvir sua voz antes de por os pés no chão e encarar o dia. Um ritual recente, mas com regras antigas, meu hinário repetido nas páginas invisíveis folheadas toda manhã.

A cama me afunda um pouco mais, o lençol descansa sem nenhuma parte presa e minha saudade começa a ganhar forma: você esticaria o pano enquanto diz que precisa de um colchão novo. Com os pés quase fora da cama descubro seis manchas vermelhas bem visíveis no pé direito, contaria quantas você tem enquanto seu instinto tentaria assassinar todos os bichos que querem nosso sangue. Acho que esse virou um lado agressivo que eu enlouqueço de rir enquanto acontece.

Em pé no quarto, ganho tempo a lembrar dos seus olhos quando se fecham e seus dentes viram lâminas ao encontrar minha carne. Acontece tudo no escuro, eu me esforço pra reparar tudo como um amante que rouba sensações, gritos e prazer à meia noite. Por um momento me vem à mente o contorno do seu corpo, o gosto que fica nos meus lábios depois que resta somente respiração ofegante no ar. A luz que entra do banheiro faz sua pele ficar dourada e meu coração mais quente. Éramos enfim verão.


Não demora muito para que a casa em silencio me traga você de volta, possuída pelo sorriso, livre. Ali na cozinha com o café na xícara e de pernas bem cruzadas, ao redor da mesa procurando sua bolsa, riscando um desenho de flor enquanto conversa no telefone, no abrir e fechar do guarda-roupas, louca atrás daquele vestido verde.

Parece que a casa arruma brincadeiras de escrever recados em todos os lugares. Os moveis conversam entre si desconfiados, os cachorros se deitam quase sempre perto dos lugares onde você esteve. As plantas se enrolam nas barras de ferro só porque você pediu. Enfim, o que há agora tem de ver com a falta, e eu sinto que ela é a única a dizer "presente".

Mas tudo isso me serve, pois cada vez que nos separamos eu recaio a pensar o quanto sua presença tem me puxado pra fora de mim e que tive amor e ele se confundia com você, agora, nesse momento. Por mais que haja aquela dor fina escondida em cada briga e na cara feia, eu vivo em saber que tudo tem saída com beijos que você guarda nos lábios, repetindo aquele meu gesto de quem sela a boca porque tem desejos demais.